Artesãs Baniwas e suas cestarias, o legado de uma tradição familiar.

Dia 19 de abril é comemorado o dia dos Povos Indígenas. Data extremamente importante para o artesanato brasileiro, já que foram os primeiros artesãos do território nacional e aqui atuavam muito antes do Brasil virar Brasil. A partir de suas mãos geraram biodiversidade e produziram objetos riquíssimos, belos e funcionais. Por isso, devemos sempre honrar e valorizar os saberes dos povos originários.

Neste ano trazemos para o foco dona Lucinda Emilio dos Santos e sua neta Patrícia. Lucinda é indígena Baniwa e completará 101 anos de vida. Ela faz parte do grupo Cestaria Baniwa, localizado no estado do Amazonas, no Rio Preto da Eva. Nascida no dia 21 de novembro de 1923, na Comunidade Pupunha Rupitá, no alto Rio Içana, mudou-se para algumas regiões com o marido e filhos, e batalhou ao longo da vida para manter sua arte viva. Falando apenas Baniwa, conseguiu mostrar sua prática ao mundo, que segue sendo feita por netos e outros artesãos.

 

Uma vida de luta e artesanato

Convidamos sua neta Patrícia para nos contar um pouco mais dessa história e do legado que a centenária artesã alimenta todos os dias.

“O nome da minha avó é Lucinda Emilio. Ela tem 100 anos e nasceu e cresceu no alto Rio Içana, alto Rio Negro. Aprendeu a trabalhar com artesanato na sua juventude. Foi a tia dela quem a ensinou e após continuou trabalhando juntamente com seus pais. Naquela época, faziam os cestos para uso próprio na agricultura e também para negociar alimentos industrializados, perfumaria e tecido com os comerciantes que passavam uma ou duas vezes ao ano pela comunidade onde ela morava. Ao se casar saiu de sua comunidade para viver com seu esposo Antônio Braga. Ele tinha um jeito aventureiro, nunca teve lugar fixo e juntamente trabalharam na colheita de seringa e de piaçava. Com o passar do tempo, tiverem seus seis filhos. Outros foram a óbito ainda criança, recém-nascidos.

Após passar uns anos viajando por esses lugares de trabalho, meu avô resolveu vir rumo baixo Rio Negro. O objetivo dele era trazer todos para Manaus a qual ele chamava por “Barra” e dizia que na capital teríamos uma vida melhor. Veio então rumo à cidade, viagem essa feita a remo em uma canoa chamada ” bongo”, embarcação feita por ele mesmo por meses. Pararam no caminho e passaram um tempo em São Gabriel da Cachoeira para, em seguida, ir para o município de Santa Isabel, vindo residir por um tempo numa ilha chamada Bela Vista. Nesse local minha avó e a família residiram por alguns anos até que meu avô veio a falecer neste mesmo lugar em 1997. E, com isso, seus filhos tiveram que tomar rumo de cada, uns ficaram em Santa Isabel e outros seguiram viagem para Manaus, já em barcos de viagem. E a vovó veio junto com os que vieram para Manaus trabalhar como caseiros. Foi só no ano 2000 que eles conseguiram uma pequena casa em Rio Preto da Eva.

Casa de Lucinda dos Santos (fonte: Sebrae-AM)

 

Ao longo da vida passaram por muitas dificuldades e começaram a fazer artesanato para comercializar. Naquela época o artesanato indígena não era valorizado. Às vezes, vendiam peças por 50 centavos a 5 reais, para poder se alimentar. Mesmo com tudo isso, não pararam a luta. Continuamos trabalhando, graças a Deus hoje em dia já melhorou muito a aceitação do nosso artesanato. Hoje minha avó já não trabalha mais, porque ela não enxerga bem, mas vontade ela tem e muito. Atualmente, vive na casinha dela, e passa o dia visitando os filhos.”

Foto da centenária Baniwa Lucinda dos Santos (fonte: Sebrae-AM)

 

O legado do artesanato passado para novas gerações

Me chamo Patrícia de Souza e eu aprendi com meus pais, trabalho com artesanato desde meus 15 anos. Hoje tenho 33 anos. Faço balaios, jarros, fruteiras, luminárias, esteiras e cestos Urutus. Nosso maior desafio hoje é a valorização de nosso artesanato. Minha maior conquista é saber que o nome Cestaria Baniwa já está conhecido lá fora, e me sinto feliz por consegui mostrar a minha cultura e a do meu povo para o mundo.

Patrícia de Souza (fonte: acervo pessoal Patrícia de Souza)

 

Trabalho com a fibras do arumã. Uma vez ao mês fazemos a colheita, porque os locais onde têm essas palmeiras são distantes da cidade e como não temos transporte próprio o frete é caro, o mais barato e pra perto são R$ 150,00 pra ir e mais R$ 150,00 pra voltar. Por isso, quando vamos fazemos vaquinha pra pagar essa despesa. Somos sete pessoas e dividimos o valor para cada um, assim ficar razoável para todos. No dia em que vamos, saímos bem cedinho, nos lugares onde coletamos muitas das vezes são sítios, nos quais sempre paramos pra conversar com os donos e enfim entramos mata adentro. Passamos maior tempo do dia no mato e retornamos para cidade já com o material. Cada um traz de 3 a 5 fechos com mais ou menos 30 a 50 talos de arumã, é o suficiente para trabalharmos o mês todo.

Grupo produtivo da Cestaria Baniwa (fonte: Sebrae-AM)

 

No dia seguinte, iniciamos a limpeza do arumã, raspando a pele verde com auxílio de uma faca que não pode ser afiada pois pode danificar o talo. Cortamos na medida dos cestos a ser feito e em seguida lavamos. Se forem produtos na cor natural, já inicia o desfibramento, caso seja colorido, após a lavagem aguardamos para secar à temperatura ambiente. Depois de seco, aplica-se a pintura. Após a aplicação da cor aguardamos secar novamente e assim aplicamos o cumati (selador natural), para esperar secar de novo e iniciar o desfibramento. Depois de feito tudo isso, lá para noite iniciamos a confecção do cesto. Dependo muito da quantidade do arumã que foi limpo, u, por exemplo, trabalho com 20 a 30 talos por dia. O tamanho é conforme o pedido do meu cliente, mas essa quantidade é suficiente para fazer de 2 a 3 peças em tamanho médio. Normalmente, à noite tecemos os cestos. Porque durante o dia não dá pra tecer, devido o tempo ser quente ou então quando o dia tá chuvoso é bom pra trabalhar nessa parte de tecelagem. É um trabalho especial e requer muita atenção para não machucar as mãos, porque a fibra e super afiada e cortante. Mas o trabalho é muito bom, eu simplesmente gosto muito.”

Dia dos povos indígenas
Patrícia e sua avó Lucinda produzindo (fonte: acervo pessoal Patrícia de Souza)

 

A valorização do trabalho artesanal indígena é o papel de todo brasileiro que entende que os conhecimentos tradicionais dos povos originários são nossa grande riqueza. Foram eles que mantiveram as florestas até hoje e garantem sua proteção a partir de sua cosmovisão e manejo sustentável na produção de objetos e alimentos. Seus saberes e vivências têm muito a nos ensinar em relação a produção de bens de forma sustentável e respeitosa com a cultura e o ambiente.

 

Texto de Patrícia de Souza e Laura Landau.